Civilidade e democracia

Civilidade e democracia

Com a proximidade das eleições, a população brasileira, aos poucos, revive a costumeira guerra declarada ao respeito, à tolerância, à civilidade e à democracia. As posições partidárias beiram ao fanatismo, se considerarmos fanatismo como a adesão cega a um sistema ou doutrina. De fato, a cegueira advinda da defesa de um candidato conduz pessoas de bem a se insurgirem contra amigos, conhecidos, desconhecidos e a toda uma parcela social que simplesmente têm opiniões diversas às delas. E as batalhas são organizadas em forma de carreatas, adesivos, panfletos e toda a ordem de falatório, tendo, nesta edição, o palanque das redes sociais, com ataques e mais ataques, de todos os lados.

É nesta época em que assistimos ao surgimento de vários “jornais” declaradamente à serviço deste ou daquele grupo. É nesta época que a noção de democracia deixa o cérebro de algumas pessoas que, de resto, seriam democráticas, mas que no arder da brasa eleitoral declaram que todos que pensam distintamente delas são ignorantes. Talvez seja necessário revermos alguns conceitos que fundamentam a noção de civilidade e de democracia, retomando o princípio do que nos une como nação, ao invés de elevar aquilo que nos separa, enquanto indivíduo.

Civilidade (do latim civilĭtas, -ātis) é o conjunto de ações, atos, palavras e formalidades adotado pelos cidadãos para demonstrar respeito mútuo e consideração. O radical da palavra também dá origem ao termo cidadão. Constitui ato contra a civilidade o desvio dessa conduta social, como a que assistimos - e protagonizamos - pelas redes sociais, por exemplo. Democracia (do grego demos, que significa “povo”, e kratos, “domínio, poder”) é entendido como o poder do povo, definido pelo corpo social, um coletivo. A perspectiva de maioria é base para se pensar o poder exercido pelo povo, e é o argumento utilizado para manter a obrigatoriedade do voto no Brasil, ainda que esse argumento possa ser questionável.

Assumindo que a democracia é um exercício coletivo, fundado nas escolhas de uma maioria, e não daqueles que pensam iguais a mim, temos a perspectiva de que a democracia é escolha de método, e não de caminho: a maioria pode fazer escolhas erradas, e ainda assim o método será preservado. Democracia é, portanto, um sistema político, em que o povo elege seus representantes para exercer o poder. Deveria estar acima de toda e qualquer posição ou motivação política.

Admitindo-se que as motivações políticas são de várias ordens - pessoais, parentais, financeiras, afetivas, mnemônicas, estéticas etc -, e admitindo-se que a maioria dos eleitores sequer tem conhecimento das propostas ou planos de governo de seus candidatos, é fácil entender um desvirtuamento na condução dos eleitores, na medida em que não elegem os projetos que querem para a sociedade, mas atentam somente para pessoas que, ao notarem que são eleitas por si e não pelos projetos, não se sentem devedores aos projetos. Mas ainda assim, motivados por crenças, análises e posições boas ou nem tanto, a democracia e a civilidade deveriam estar acima de tudo, por princípio.

Entretanto, os discursos criados, alimentados e largamente difundidos nas redes sociais, escancaram uma formação deficitária de cidadania, de civilidade e de democracia em nossa sociedade. As posições antidemocráticas, autoritaristas e atos fascistas denotam uma fragilidade de formação e de educação, sobre os dois termos que dão título a este artigo. Ações como intolerância, ataques verbais ou tecnológicos, alcançando ataques físicos, são evidências de como nossos valores democráticos sucumbem à experiência social. Desde os ataques a torcedores de outros times, passando por eliminação de “amizades virtuais” por divergência partidária, alcançando as falas alicerçadas pelo exercício de demérito do outro, pelo simples fato de eu não conhecer a verdade do outro e vice-versa, essas evidências sociais indicam a premência de revermos o Brasil como civilização.

Se as “brincadeiras” de nossos torcedores na Copa do Mundo se equiparam à crime, se a ida a um estádio, para torcer, se converte em guerra, se as eleições, que deveriam festejar a democracia, tornam-se palco para a intolerância, o fundamento da civilidade carece ser exercitado socialmente. Meu direito de não comungar dos interesses dos outros e vice-versa é democracia. Não aceitar que o outro faça suas escolhas é intolerância. Não admitir a existência do diferente, impondo conceitos e valores individuais em detrimento dos interesses e direitos do outro, é comportamento fascista.

Entre eleitores dos diversos partidos, dos candidatos aos diversos cargos, o mais relevante é, ou deveria ser, nossa consciência de democracia como princípio e de civilidade como atitude. Considerar ignorantes os eleitores de quem eu, definitivamente, não considero ser a melhor opção, não ajuda a consolidar a democracia, muito menos a formar, na sociedade, a consciência de civilidade. A defesa do meu candidato e de seus planos ou de minhas posições políticas, identitárias ou sociais, não pode ser confundida com o direito de atacar posições e pessoas com pensamentos divergentes. A civilidade é fundamento para a consolidação da democracia.

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