Link Coluna 29-04 - Turbidez

Turbidez

Tema: Turbidez

Veículo: Diário da Manhã

Número: 11.449

Página: 14

Caderno: Opinião Pública

Data: 29/04/2019

O momento parece ser de turbidez. Ao mesmo tempo em que temos instrumentos tecnológicos para avançarmos enquanto humanidade, retrocedemos. E o fazemos nas relações sociais, políticas, éticas, morais e informacionais, além da psicológica.  

Nas relações sociais, o descarte típico das redes substitui as relações em comunidades, fragilizando os já raquíticos laços sociais que nos mantém vinculados a outras pessoas. As redes sociais, como já aponta Zygmunt Bauman, criam o exercício fácil de estabelecer ou desfazer amizades com um clique, a partir de um evento apontado pelo sociólogo de 90 anos: a distinção entre comunidade e rede. Na primeira, o sujeito pertence à comunidade, enfrentando pensamentos divergentes e mantendo o exercício da convivência. Na segunda, você cria a rede, que passa a substituir a comunidade, selecionando aqueles indivíduos que fazem eco ao seu pensamento. O pensamento divergente é eliminado, resultando em redes e timelines tão personalizadas quanto redundantes em termos de interesses. Essa ação, completa Bauman, deixa as pessoas se sentindo um pouco melhores, porque a solidão é a grande ameaça nesses tempos individualistas.

Na política, os eventos batem recordes de insensatez, mergulhando o país em fake news, pós-verdade e posições extremistas. A simplificação entre direita e esquerda, sem o exercício conceitual do que isso representa, se alinha à simplificação do modelo dual entre bom e mau, bem e mal, certo e errado, Deus e o Diabo, como se as opções fossem claras e constantes. Ocorre que todos optam por bom, bem, certo e Deus, mas enxergam que os outros fizeram, deliberadamente, a opção oposta, dando razão à Sartre, que afirmou que o inferno são os outros.  A busca da eliminação de um pensamento ideológico alcança níveis patológicos, inclusive por não enxergar a própria ideologia aí contida, que se revela com cores autoritárias ou fortemente marcada por pensamentos reacionários. Reação talvez seja o motor que faz girar o cenário político brasileiro, com polarizações que extirpam a transparência da cena, impedindo não apenas a mirada esclarecida, mas fundamentalmente o posicionamento em prol da cidadania.

Ética e moralmente, a sociedade brasileira afunda em discursos e comportamentos contraditórios, requerendo, a golpes de machado, a sutileza e simpatia dos que estão próximos. As mensagens raivosas, cada vez mais frequentes nas redes sociais, evidenciam o comportamento arredio e nada democrático, ético ou moral, enquanto semanticamente reivindicam exatamente o comportamento democrático, ético e moral. E, por menos lógico que isso pareça,  as mensagens de ódio endereçadas a minorias se valem de discursos bíblicos e noções cristãs, com as devidas alterações óbvias: a revogação do sexto mandamento em nome da defesa pessoal ou patrimonial; a inobservância do nono mandamento, tendo como justificativa o posicionamento político do outro. Caso sério de desconhecimento dos preceitos que julga defender.

No campo informacional, a entropia se converte em caos, mediante as escabrosas declarações de ignorância que pululam nas redes, cometidas por cidadãos de bem, nem sempre munidos de boas intenções. A replicação de informações convenientes supera o interesse pela verdade. Fenômenos como o fato de as doações para a reconstrução da Catedral de Notre-Dame, em Paris, superarem, e muito, as doações para reconstrução de países devastados por fenômenos naturais ou mesmo ao combate à fome causam mais comoção que as próprias tragédias, embora não alterem as ressonâncias que uma casa e a outra não. O fogo da Notre-Dame incendiou também as redes, enquanto o ciclone que devastou Moçambique, Malawi e Zimbábue, deixando mais de 100 mil pessoas em risco de morte, segundo dados dos países afetados, não conseguiu varrer a rede com compartilhamentos de sua existência. As pessoas indignadas com a diferença de comoção são as mesmas que compartilham seu descontentamento, mas não nota que elas mesmas fazem parte dessa massa que se vê mais inquieta com o que a aflige, que com as tragédias em si.

Ainda no campo informacional, a turbidez se deixa ver claramente em movimentos contrários aos de transparência, que colocam em causa a própria noção de dados públicos. A recente determinação de que os estudos sobre a Previdência sejam sigilosos contrasta com a perspectiva do princípio público da publicidade, visto ser o tema de interesse público e de relevância para o exercício da cidadania, que define outro conceito obliterado por governantes e doutos magistrados aqui e acolá.

Estamos em estado de turbidez também psicologicamente, com taxas de transtornos mentais em ascendência, como ocorre também com taxas de suicídio e homicídio. O estresse e a ansiedade parecem disputar lugar no pódio, enquanto a sociedade adoece, retardando a entrada de soluções inteligentes em seus vários campos, inclusive no campo da saúde mental. A telemedicina sucumbe aos interesses de reserva de mercado, manifestos doentiamente por empresas e profissionais que colocam o juramento de Hipócrates de lado, no mesmo canto em que o interesse público, raquítico, aguarda atendimento médico. E espera deitado.

Os ataques verbais e ideológicos às Universidades dão conta do tamanho de nossa febre. Quem mais auxiliou no desenvolvimento das regiões de nosso país, delineando perfis profissiográficos e formando as gerações que catapultaram o Brasil, antes tido em uma economia extrativista, para um país exportador de tecnologia, é execrado justamente por construir espíritos e mentes livres. Quem diria que educadores se vissem ameaçados em sua ação de educar, constrangidos por declarações grosseiras de quem enxerga a educação e a cultura como ameaças. Quem diria que, em pleno século XXI, estivéssemos envoltos em uma espessa névoa medieval de caça às bruxas, quando a História nos ensinou que as bruxas eram muito menos ameaçadoras que quem as perseguiu e as queimou em praça pública. Quem diria que em pleno Século XXI ainda existam declarações racistas, sexistas, homofóbicas, machista… pior que declarações: ações criminosas baseadas nesses pensamentos/comportamentos sociais turvos.

O momento parece ser de turbidez. E nada, nada, parece claro.

Leia o artigo publicado.

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